Cenas da seca no sistema Cantareira |
Muito se fala atualmente sobre a seca em SP, mas pouco se fala na prevenção ao inevitável, afinal as secas no sudeste do Brasil ocorrem naturalmente, e de forma sazonal, por fenômenos não muito bem compreendidos que se correlacionam entre si. Mas embora não sejam bem compreendidos devem ser esperados pelos governos estaduais e federal com investimentos que evitem que os reservatórios sequem. Neste artigo poderemos ter uma visão de 360º do que acontece com o sudeste nesta que já é uma das maiores secas da história da região, e assim responder a pergunta que não quer calar, existem culpados para a falta de água? E se sim, de quem é a culpa?
Chuva para quem te quero...
A primeira regra para se compreender um regime de chuvas e de se fazer um paralelo entre ele, o clima e o meio ambiente é compreender que: não é a floresta que faz chover, a floresta está ali porque chove, e isso vale também para a formação dos rios e lagos, porque a única forma de contribuição hídrica significativa para o solo vem na forma de chuvas, mas, existe uma grande diferença, ignorada por muitos, inclusive num artigo que li na revista Veja do colunista Leandro Narloch, entre o regime de chuvas e a retenção da água em um ecossistema. (clique aqui para ver o artigo um tanto simplista do colega Leandro Narloch: O mito do ano: “o desmatamento da Amazônia provocou a seca no Sudeste”.)
É fato que o regime de chuvas de um local, também relacionado diretamente a distancia desse ponto com a linha do equador, que vai determinar o tipo de ecossistema que irá se formar ali, em lugares mais frios e de menos umidade e menos chuvas, teremos, por exemplo, as florestas temperadas, típicas dos Estados Unidos e da Europa, em locais mais quentes e úmidos, em que existe maior concentração de chuva, teremos a formação de maior biodiversidade e de florestas úmidas tropicais, já em locais de muita radiação solar e pouca chuva teremos como regra a desertificação. Mas além do efeito geográfico e geológico, temos também uma interferência direta da natureza biológica no processo de retenção da água da chuva, ainda mais em países como o Brasil, de predominância de florestas tropicais.
O musgo e o aumento da oferta de água nos rios
Em ecologia estudamos sobre a evolução da biota, ou seja, a evolução dos ecossistemas, e essa evolução começa com os organismos chamados de pioneiros, são criaturas espetaculares, do qual os musgos e liquens fazem parte, esses organismos são capazes de aturar grandes quantidades de exposição à radiação solar e as intempéries do clima, e costumam colonizar a rocha ainda não degradada, ou seja, são organismos que exigem pouco do ambiente para sua sobrevivência.
Mas o que os organismos pioneiros tem a ver com o ecossistema de São Paulo hoje? Tudo! Porque são esses organismos que fazem fotossíntese e estão na base da cadeia alimentar, que abrem espaço para que organismos mais exigentes, aqueles que dependem de água doce, que não podem ficar expostos a radiação solar ininterruptamente, e são heterotrófos, ou seja, precisam se alimentar de outro organismo vivo para sobreviver, possam se estabelecer em um ambiente sem grandes dificuldades.
Ou seja, o fato que esses organismos apenas se desenvolveram por conta de uma situação pré-existente de chuvas e de clima, não significa que a própria natureza, pouco a pouco, não tenha modificado o ambiente e o clima por conta própria, numa evolução constante, desde os organismos pioneiros até as complexas florestas tropicais. Sem a entrada dos pioneiros também não haveria a formação da floresta.
Assim as florestas começaram com organismos pioneiros, e hoje são a principal fonte de biodiversidade do planeta, e são oque permite que a retenção de água da chuva nas bacias hidrográficas aumente exponencialmente.
Bacia hidrográfica, o alimento dos Rios, os Andes o alimento da amazônia
Mas o que é bacia hidrográfica e o que ela tem a ver com a floresta e a formação dos rios? Agora sim entramos na alma do assunto. Poucas pessoas sabem, mas o rio nada mais é do que uma afloração do lençol freático, isso mesmo! O lençol freático seria como se fosse um rio subterrâneo, formado por moléculas de água se deslocando entre os grãos de matéria que formam o solo, sempre no sentido de cima para baixo por causa da força da gravidade. Levando-se em consideração que o ponto mais baixo dos continentes é o ponto de encontro com o mar, então podemos concluir que, sem empecilhos geográficos, toda água de chuva que corre pelo lençol freático e não fica confinada em aquíferos acaba desembocando no mar, os rios seguem esse mesmo padrão, e eles são a parte de água do lençol freático que por causa da topografia do local acabam ficando acima do solo. (Para entender melhor veja as figuras no final do texto).
Então resumindo tudo, a bacia hidrográfica seria como se fosse um funil, e o rio se formaria ali no fundo do funil, na depressão mais baixa dos vales, em uma linha que ficasse abaixo da linha do lençol freático do solo. Assim tudo o que chove nas partes mais altas da bacia hidrográfica vai desembocar em um mesmo rio. As partes altas da bacia hidrográfica, as montanhas e os morros, também atuam retendo as nuvens e a umidade que, impedidos de passar por essas elevações, acabam se acumulando e criando os regimes de chuvas que vão alimentar o lençol freático e por consequência os rios. No nosso caso, aqui no Brasil, a cadeia montanhosa dos Andes atua como uma barreira que impede que as nuvens formadas no oceano atlântico passem batidas, assim podemos dizer com certeza, que os Andes são os grandes responsáveis pelo volume do Rio Amazonas, pela maior parte das chuvas que ocorrem no norte do país, e pela própria existência da floresta amazônica, não fosse isso, muito provavelmente a Amazônia seria um grande deserto, parecido com o deserto do Saara na áfrica.
A floresta, amiga dos rios e amiga do homem
Voltando à atuação do ecossistema sobre a oferta de água podemos afirmar também que a mata e a vegetação se tornaram muito importantes para a manutenção do equilíbrio hídrico que permita a vida nos rios e mesmo no solo com o aumento da oferta de água no lençol freático.
A vegetação atua como um mecanismo biológico para reter mais água no solo, primeiro reduzindo a vazão de água que cai e que escorre pelo solo, atuando como um amortecedor por meio de suas folhas e camadas superiores, diminuindo a intensidade da chuva. Com a diminuição da intensidade da chuva ocorre um aumento da capacidade do solo de infiltrar a água no lençol freático, porque até mesmo a camada superior do solo tem um limite se saturação, e precisa de um tempo pra que a água percole, se você joga muita água em um curto espaço de tempo o solo não é capaz de infiltrar essa água com eficiência, causando enchentes. A infiltração da água ainda é facilitada pelas raízes dos vegetais, que criam mais espaço para a percolação da água, além de as próprias raízes também reterem parte da água que passa, aumentando a umidade do solo.
Outro mecanismo incrível dos vegetais é a transpiração, que é o vapor de água liberado pelas plantas durante seu processo metabólico. A transpiração vegetal tem sido alvo de diversos estudos que apontam a sua interferência no aumento dos regimes de chuvas das florestas e áreas proximas à elas, e na diminuição de intensidade de zonas de calor que fazem minguar as chuvas. Alguns desses estudos chegam a relacionar a diminuição da intensidade das chuvas observadas no sudeste nos últimos anos com a perda de floresta na amazônia provocada pelo desmatamento.
O homem, agente do caos
O homem entra no ciclo hídrico como um agente do caos. Primeiro com o desmatamento e construção de moradias em áreas que deveriam ser faixas de proteção das margens dos rios, cria-se zonas urbanas condenadas ao alagamento e às enchentes nas épocas de chuvas. Além disso o desmatamento acaba com todos os benefícios para a retenção de água no lençol freático. E para fechar o caixão ainda ocorre a impermeabilização do solo, ou seja, a urbanização e o recobrimento do solo por ruas, moradias e zonas comerciais e industriais, que selam o solo, o que reduz drasticamente a infiltração da água da chuva.
A demanda de água também deve ser calculada de forma à respeitar os limites naturais do rio. No Brasil temos uma legislação até avançada nesse sentido, assunto que pode ser tratado em outro momento. Devemos assim determinar o máximo de água que se pode comprometer do rio sem com isso correr o risco de secá-lo, e para isso existem diversos métodos, o mais utilizado no Brasil é o método de Q7-10 (com a letra Q representado a vazão mínima do rio na semana mais seca em um período de 10 anos). Neste caso por meio de estudos se estabelece qual foi a média do volume de água no rio na semana mais seca em um período de dez anos de observações, a vazão máxima que poderá ser captada do rio será 50% desse valor mínimo histórico. Acontece que muitas vezes esse valor de segurança não é respeitado, e em momentos de estiagem o rio simplesmente seca por não ter capacidade de atender a demanda de água que se retira dele.
Os efeitos secundários do desmatamento conseguem ser ainda mais nocivos para o processo de retenção de água no lençol freático e para os rios, sem a camada de vegetação o solo fica exposto à radiação solar direta e as intempéries do clima; como a própria chuva e o vento, o que gera a ocorrência de fenômenos como a erosão e a lixiviação.
A erosão reduz acentuadamente a capacidade de retenção de água no solo, quando esse solo recebe grandes intensidades de chuva ele promove a lixiviação e o carreamento de sólidos para o rio. Isso acontece porque todo o volume de água da chuva, incapaz de percolar na mesma velocidade que se acumula no solo, acaba por escorrer na superfície em grande vazão diretamente para os rios, levando tudo o que estiver no caminho, e carregando muita areia e terra que acabam por assorear os rios. O assoreamento do rio aliado à menor capacidade de retenção do lençol freático podem secar o rio, mesmo que não esteja ocorrendo uma estiagem. Trágico!
Enfim, de quem é a culpa da falta de água em São Paulo?
Se a pergunta fosse: "-De quem é a culpa da seca em São Paulo?", a resposta seria: "-Ninguém!". Ninguém é culpado pela seca em São Paulo, isso porque a seca ocorre naturalmente e de forma sazonal, ou seja, de tempos em tempos. Mas esse fato não é desculpa para que falte água, mesmo porque, diferentemente dos astecas que pediam clemência aos deuses nas épocas de estiagem, hoje em dia temos mecanismos para evitar que a água falte em épocas de seca. Por isso temos sim culpados quando se trata da falta de água em São Paulo, e estes seriam o governo do Estado de São Paulo a CETESB e a SABESP.
Poderia citar aqui a enchurrada de notícias, constatações, estudos (muitos deles da própria SABESP e CETESB) que confirmam a responsabilidade dos acima citados na crise hídrica paulista, mas como o texto já muito se alonga, me contento em mostrar apenas os 5 fatores principais que levaram a falta de água em SP:
1 - Falta de planejamento: Não ocorreram obras e investimentos que acompanhassem a demanda hídrica de São Paulo, os mananciais e represas já demonstravam há 10 anos atrás por meio de estudos, que seriam insuficientes para abastecer a cidade mesmo à curto prazo, havendo a necessidade da procura de novas fontes hídricas.
2 - Não houve respeito a critérios de segurança hídrica: A vazão máxima de segurança para a captação nas represas e rios, que foi abordada neste texto, não foi observada, além de ser um desrespeito às legisçações vigentes, era evidente que dessa forma a vazão captada não iria se sustentar em uma época de estiagem.
3 - A manutenção das represas e rios é precária: Os rios que formam as represas e mesmo as represas e reservas hídricas, como o Cantareira, encontram-se em áreas completamente desmatadas, com efeitos visíveis de erosão, e processos de assoreamento em curso, além disso a qualidade das águas ainda sofre com a poluição difusa de áreas urbanas e industriais que não possuem sistema de tratamento de efluentes eficiente ou mesmo que não possui tratamento nenhum.
4 - Não existem obras para aumentar a retenção de água no solo: Algumas soluções pontuais de obras que visem aumentar a retenção de água no subsolo e por consequência aumentar a vazão dos rios e represas são ignoradas, dessa forma os mananciais apresentam acúmulo de água nas chuvas e uma rápida queda de nível logo após as chuvas.
5- A proteção de nascentes é ineficiente ou inexistente: A proteção de nascentes é de vital importância para preservar o volume e a vazão de água ao longo do rio, neste caso não são observadas políticas públicas eficientes para a proteção de nascentes.
Enfim, vamos rezar à tupã!
INFOGRÁFICOS: A SECA E O DESMATAMENTO, PARA ONDE VAI A CHUVA?
Para quem quer saber mais:
- A Última Gota, de Vanessa Barbosa - (O livro “A Última Gota” mostra o drama da falta d’água e os problemas que comprometem a sua oferta, em qualidade e quantidade, nas grandes cidades do Brasil.) Atual e eu super recomendo.
- Biomas do Brasil: Desafios e Alternativas - (Este livro surgiu da esperança de, ao conhecermos mais detalhadamente o intrincado bioma brasileiro...)
- CPRM - Serviço Geológico Brasileiro - Relatórios da estiagem no sudeste, mapas hidrográficos brasileiros, atlas sobre a água subterrânea no Brasil, entre outros dados. Acesse: http://www.cprm.gov.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=36
- Interações Ecológicas & Biodiversidade - Tissot -Squalli, Mara (ORG.) - (Este volume vem contribuir com os estudos de interações e biodiversidade da biota de sistemas tropicais e subtropicais.)
- Texto e imagens sobre proteção da lei de direitos autorais, proibido o compartilhamento de qualquer parte do conteúdo sem a devida referência.
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